Em SC, ex-catador de lixo se torna doutor em Linguística

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os 35 anos, Dorival Gonçalves Santos Filho defendeu a tese do doutorado em Linguística em 10 de maio na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em Florianópolis. Professor pela prefeitura da capital, da infância até o início da vida adulta Dorival ajudou a sustentar a família coletando resíduos em um lixão de Piedade (SP). Obrigado a largar os estudos por seis anos devido ao trabalho, ele aproveitou os livros achados no lixo para, por exemplo, ler quase toda obra de Machado de Assis.

“Eu contrariei minha mãe, a enfrentei e parei de estudar depois da 8ª série. Não tinha como continuar, chegava ao fim do dia exausto, com as mãos cortadas, de tanto recolher lixo e separar, meu caderno ficava manchado de sangue. Eu ficava tão cansado que às vezes dormia sem jantar”, contou.

Aos seis anos, Dorival já ajudava a mãe a coletar materiais no lixão (Foto: Arquivo pessoal)

Aos seis anos, Dorival já ajudava a mãe a coletar materiais no lixão (Foto: Arquivo pessoal)

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De uma família de cinco filhos, Dorival cresceu coletando materiais ao lado dos irmãos e da mãe no lixão e em latões na frente da casa das pessoas, onde faziam a separação dos materiais para a comercialização. Apesar de a mãe ter se tornado gari, ela ainda não tinha como garantir sozinha o sustento de todos.

“Meu trabalho era uma fonte de renda importante para minha família. A maioria da nossa alimentação vinha do lixão, vinha de pacotes de comida que as pessoas descartavam, frutas que podiam ter a parte podre cortada. Eu tomava café da manhã no lixão, disputava a comida com centenas de corvos e cães. A gente usava cabos de vassoura para espantá-los”, recordou.

No lixão, Dorival foi encontrando aos poucos livros que formaram um acervo de até três mil publicações. As obras lotaram as paredes do quarto que dividia com o irmão, as caixas colocadas embaixo das camas e até um quartinho dos fundos de casa.

“Eu avisava meus colegas: ‘quando vocês encontrarem um livro, passem para mim’, eu sempre amei ler. Eles preferiam sapatos, então, fazíamos essa troca. Foi assim que ainda na adolescência li quase a obra completa de Machado de Assis e alimentei o sonho de criar uma biblioteca comunitária, o que acabou não acontecendo”, contou.

Algumas das obras encontradas no lixão por Dorival (Foto: Arquivo pessoal)

Algumas das obras encontradas no lixão por Dorival (Foto: Arquivo pessoal)

Aos 21 anos, Dorival pode voltar a estudar e realizar o sonho de conquistar um emprego formal. “Eu acordava de madrugada para trabalhar no lixão e atividade era subumana. Quando minha mãe começou a receber o Bolsa Escola, já não estava mais sozinha para sustentar a gente, então pude voltar a estudar. Esse pode parecer um discurso político, mas não é, foi o que aconteceu na minha vida”, contou.

Apesar dos seis anos afastado da escola, a leitura tornou Dorival um jovem curioso, reflexivo e maduro. “Minha professora de português me estimulou muito, disse que eu tinha um grande potencial, que eu poderia ser um professor. Minha mãe foi a primeira a acreditar nisso. Quando ouvi minha professora de artes ao telefone falando francês, foi amor à primeira vista, decidi que também falaria aquele idioma um dia”, relatou.

Apesar do auxílio do programa social, o estudante continuou trabalhando e driblando as dificuldades financeiras da família. Quando uma equipe da Universidade Estadual Paulista (Unesp) visitou a escola dele para divulgar o vestibular, sorteou dois alunos para fazerem a prova gratuitamente, e um dos contemplados foi Dorival.

“O vestibular era em outra cidade e durava três dias, minha mãe conseguiu dinheiro emprestado para a passagem, mas a gente não tinha para alimentação, eu fui fazer a prova com fome mesmo. Tinha me preparado com os livros do lixão e passei”, contou.

Dorival defendeu a tese de doutorado em 10 de maio (Foto: Arquivo pessoal)

Dorival defendeu a tese de doutorado em 10 de maio (Foto: Arquivo pessoal)

Para a matrícula, uma professora pagou a passagem até a faculdade e quando deixou a família para cursar Letras, Dorival se mudou para Assis (SP), a 400 km de casa.

“Foi difícil deixar a todos, sem minha renda, mas eu sabia que era para melhorar a situação. O começo foi difícil, porque só tinha o dinheiro que minha mãe conseguiu emprestado para o primeiro mês de aluguel. A alimentação ficava por conta do café da manhã que um supermercado da cidade oferecia”, contou.

Depois, ele conciliou uma bolsa de iniciação científica, e os trabalho na divulgação do vestibular e como cuidador de um idoso para sobreviver durante a graduação. “Em 2010, quando me formei, com o desemprego da minha família e o crescimento da violência na periferia em que a gente morava, eles se mudaram para Guaramirim”, relatou.

No Norte catarinense, graduado em Letras Português/Francês, Dorival se tornou professor em uma escola do centro de Guaramirim. Na sala de aula, ele sentiu crescer o desejo de se dedicar à pesquisa acadêmica e dar continuidade aos estudos. “Foi então que fiz mestrado e depois doutorado, com bolsas de estudos”, contou.

Dorival ama ler desde criança (Foto: Arquivo pessoal)

Dorival ama ler desde criança (Foto: Arquivo pessoal)

Atualmente, Dorival é professor do ensino fundamental da prefeitura de Florianópolis. “Agora, é minha vez de devolver para a sociedade o investimento que foi feito em mim, com programas sociais e bolsas de estudos. Este é o momento de compartilhar o que aprendi e as vivências que tive desde a experiência com a família, na universidade e ainda a pessoa que me tornei”, afirmou.

Apesar da história de batalhas e vitórias, Dorival prefere que sua vida não sirva de exemplo para os que acreditam em meritocracia. “Eu tive oportunidade. Sem os programas sociais, as bolsas de estudo, nada teria sido possível. Quando penso na vida, faço o comparativo com uma maratona, em que muitos estavam com vantagens na minha frente. O trabalho deles seria uma corrida normal e o meu seria uma longa corrida com obstáculos. Eu tive apoio da família, ajuda de professores, de pessoas amigas, mas principalmente, aproveitei as oportunidades”, afirmou.

Por Juliana Gomes, G1 SC

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