Prefeitos negociam milhões de doses de vacina com empresa búlgara, mesmo sem garantia de entrega

'Sputnik V' é a vacina desenvolvida na Rússia Foto: RDIF
Publicidade

BRASÍLIA – Estadão Conteúdo

Com a necessidade de acelerar a vacinação contra covid-19, prefeituras de mais de duzentas cidades do País passaram a negociar a compra de imunizantes com uma empresa búlgara, mesmo sob incertezas de que vão receber as doses. A TMT Globalpharma, que diz atuar como intermediadora dos produtores, promete entregar milhões de unidades da Sputnik V e do modelo de Oxford/AstraZeneca nos próximos meses. As próprias fabricantes, no entanto, desacreditam o negócio. Prefeitos, por sua vez, negam ter caído em um golpe.

Nota: Vale lembrar que o STF só autorizou Estados e Municípios a comprar, se houver falha ou atraso por parte do Governo Federal. 

Publicidade

A AstraZeneca afirmou ao Estadão que já comprometeu todas as suas doses em vendas a governos nacionais e ao consórcio Covax Facility e que não há possibilidade de entregar lotes a Estados e municípios. Já o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), que negocia a Sputnik V, declarou que a companhia búlgara NÃO tem – assim mesmo, em letras maiúsculas – autorização para esta venda. A representante da vacina russa no País é a União Química, que não se manifestou sobre a negociação por outra empresa.

Apesar da falta de aval das fabricantes, representantes de municípios de várias regiões do País têm assinado cartas de intenção de compra das doses e comemorado o acordo nos sites oficiais das prefeituras e nas redes sociais. O pagamento, segundo eles, só deve ocorrer após receber o produto, motivo pelo qual descartam se tratar de um golpe.

“Não vou esperar sentado na minha cadeira a vacina cair do céu”, afirmou ao Estadão o prefeito de Aparecida de Goiânia (GO), Gustavo Mendanha (MDB).

Em plena disputa global por vacinas, a cidade de 500 mil habitantes na região metropolitana de Goiânia espera receber, em poucas semanas, cerca de 1 milhão de doses de Oxford/AstraZeneca, fabricadas pelo Instituto Serum, da Índia. Trata-se do mesmo produtor que envia os imunizantes a conta-gotas ao Ministério da Saúde. Das 12 milhões de unidades encomendadas pelo governo federal, só 4 milhões chegaram ao País.

O prefeito reconhece não haver garantias de entrega para a sua cidade. “Só vamos efetuar pagamento se as vacinas chegarem. Então não sei qual seria o golpe”, disse ele. Segundo Mendanha, o município deve pagar cerca de US$ 10 (R$ 58) por dose, preço superior ao desembolsado pelo ministério com o mesmo instituto (cerca de US$ 5,3 ou R$ 30). Procurado, o Serum não se manifestou.

https://twitter.com/cleniltonsc/status/1367985306197241858?ref_src=twsrc%5Etfw

Presidente da FECAM, Clenilton Pereira, que encabeça a campanha em Santa Catarina.

Pressão por mais vacinas

As negociações ocorrem no momento em que há pressão sobre o governo Jair Bolsonaro para ampliar a campanha de vacinação. Prefeitos e governadores tentam fazer compras diretas dos imunizantes. O cenário, porém, não é favorável. Há escassez de doses no mundo e a imunização no Brasil pode parar, como o próprio Ministério da Saúde passou a admitir.

Além da cidade goiana, mais de 200 prefeitos da Federação Catarinense de Municípios (Fecam) esperam fechar com a TMT, nos próximos dias, uma compra de 3,5 milhões de vacinas Sputnik V. Cada dose deve custar cerca de US$ 9,5 (R$ 55) e a expectativa é receber o produto 15 dias após a assinatura do contrato.

O preço e o cronograma prometidos pela empresa da Bulgária são melhores do que o Ministério da Saúde conseguiu, mas o fundo russo afirma que a intermediária não tem autorização para esse negócio. O governo federal pagou cerca de US$ 12 dólares (R$ 70) por dose, num contrato de 10 milhões de unidades. A primeira entrega ao ministério, de 400 mil vacinas, só será feita em abril.

As condições de entrega oferecidas à Fecam também superam o acordo da Argentina com os russos. O país vizinho recebeu cerca de 2,6 milhões de doses da Sputnik V até agora. Consultor de Saúde da Fecam, o médico Jailson Lima não acredita em golpe da TMT. Ele afirma que a federação já planeja ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) para evitar um eventual confisco das doses pela União, além de garantir o uso do imunizante sem precisar do aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Se vai vir ou não, vamos ter de aguardar”, disse.

Procurada, a TMT disse não representar farmacêuticas, mas sim o “comprador”, em serviço de “intermediação”. Questionada sobre como as doses serão obtidas, considerando que as fabricantes dizem que não há estoque para venda aos governos locais e não reconhecem a TMT como parceira, a empresa afirmou que não pode detalhar os acordos, pois ainda não há contratos fechados com o Brasil.

A Bra Medical Solution, de Cotia (SP), participa das negociações ao lado da TMT. A empresa tem autorização da Anvisa para importação de medicamentos. Procurada, não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Autoridades dos municípios que acompanham as negociações afirmam que a TMT garante já ter as doses na mão, o que a empresa negou ao Estadão ter prometido. Um documento apresentado à reportagem cita que a TMT buscou 70 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca por meio da empresa Davati Medial, dos Estados Unidos. O produto seria entregue ao governo federal, mas o Ministério da Saúde disse que jamais recebeu proposta destas empresas. A carta vinha sendo apresentada por negociadores como garantia de que a TMT tem as doses, segundo pessoas que acompanham as negociações no Brasil. A empresa búlgara disse à reportagem que a negociação com o ministério não chegou a avançar.

A TMT também disse que o Brasil tem leis e medidas “muito complexas”, pois autoriza “diversos poderes a comprar vacinas covid-19”. Assim, na visão da empresa, qualquer pedido que não venha do “governo central” é tratada como possível fraude pelas farmacêuticas.

A própria Davati, porém, já foi desautorizada pela AstraZeneca no Canadá. Segundo notícias veiculadas pela imprensa local, a empresa americana negociava a venda de vacinas com uma comunidade formada por descendentes de povos originários, mas sem aval da farmacêutica britânica.

Cidades no Rio Grande do Sul e no Ceará também negociam

Além de Aparecida de Goiânia e a federação catarinense, a TMT se reuniu na semana passada com um consórcio de prefeitos da região metropolitana de Porto Alegre (RS). Após a conversa, a prefeitura de Canoas, cidade com cerca de 350 mil habitantes, informou que deseja comprar 400 mil doses da Sputnik V. Já o prefeito da capital gaúcha, Sebastião Melo (MDB), disse ao Estadão que ainda espera “concretude” para a compra.

“Nossa adesão ao consórcio e prosseguimento para aquisição vai depender da segurança jurídica. Queremos comprar vacina? Queremos. Mas só vamos depositar qualquer valor mediante confirmação de que chegará a vacina”, disse Melo.

Prefeitos do Ceará também anunciaram negociações com a empresa da Bulgária. A Associação dos Municípios do Cariri Oeste (Amcoeste), que reúne 11 cidades, espera receber 150 mil doses. Já a Associação dos Municípios do Maciço do Baturité (Amab) – 15 cidades – mira 300 mil unidades da vacina russa.

Diante da demora do governo Bolsonaro de fechar a compra de mais vacinas, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) também organiza um consórcio para a compra, mas afirma que ainda não abriu negociações com empresas. Em janeiro, um grupo de empresários articulou a aquisição de 33 milhões de doses da AstraZeneca, prometidas por uma intermediária. O governo federal chegou a dar aval à compra, sob condição de que metade das doses fosse doada ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas a farmacêutica negou que tivesse produto disponível ou tivesse dado aval à qualquer venda.

Prefeitos disseram ao Estadão que já receberam proposta para compra de vacinas da Janssen e Sinovac, por meio de intermediárias. Procurada, a Janssen afirma que só negocia a venda ao governo federal e a Sinovac tem parceria com o Instituto Butantan para fabricar a Coronavac. A produção, porém, está comprometida com o governo federal.

A importação de vacinas também depende de autorização sanitária. A Anvisa cobra dados sobre os lotes para impedir a distribuição de produtos sem qualidade, eficácia ou até mesmo falsos. Além disso, a agência só registrou a vacina da Pfizer até agora. Mesmo assim, para trazer esse imunizante é preciso provar que o produto comprado tem as mesmas características e local de fabricação indicados no registro.

Estadão Conteúdo

Publicidade