Versão forjada sobre morte de Higino João Pio é desmascarada pela Comissão da Verdade

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Ostentar um carisma acima da média, mesmo com pouco estudo, ter criticado abertamente o golpe militar se 1964, estar numa coligação que desagradava as oligarquias de Santa Catarina, receber na prefeitura o ex-presidente João Goulart, o Jango, que tinha uma casa de veraneio em Balneário Camboriú.
Por um desses pecados, ou por mais de um deles, o hoteleiro Higino João Pio, o primeiro prefeito eleito da cidade, morreu no dia 3 de março de 1969 numa cela da Escola de Aprendizes Marinheiros, em Florianópolis.
Ele é o único dos 10 catarinenses vitimados pela ditadura que foi morto no Estado. O processo final sobre Higino faz parte do Acervo da Ditadura, doado em junho pelo Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça ao IDCH (Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas), da Faed/Udesc.

Na época, um inquérito instaurado pela direção da Escola de Aprendizes concluiu que Higino teria cometido suicídio, e a causa da morte que valeu até junho de 2014 foi a de asfixia por enforcamento. O laudo era acompanhado de fotos que tentavam apresentar evidências do suicídio, mostrando o prefeito pendurado por um fio de arame amarrado ao registro de água do banheiro da cela. Por insistência da família e a pedido do coletivo e da Comissão Estadual da Verdade, um novo laudo foi produzido no ano do cinquentenário do golpe. Sua conclusão: a vítima fora morta e colocada no local em que foi encontrada “após a rigidez cadavérica haver se instalado”.

A perícia feita em 2014 constatou que prefeito foi assassinato “provavelmente pelas forças de segurança”, segundo documento da comissão. “Esclarecer a verdadeira história de Higino foi o grande ganho do Coletivo Memória, Verdade e Justiça, porque encerrou o caso”, diz Derlei de Luca, cujas obstinadas pesquisas também ajudaram a descobrir quem prendeu, matou e deu sumiço ao corpo do ex-deputado Paulo Stuart Wright, em 1973, em São Paulo. O trabalho foi feito pelos peritos Pedro Luiz Lemos Cunha, Mauro José Oliveira Yared, Roberto Meza Niella e Saul de Castro Martins. O relatório conclusivo foi encaminhado à família de Higino Pio para a retificação do atestado de óbito e ao Ministério Público Federal em Santa Catarina para que “proceda os atos necessários ao esclarecimento dos autores do fato [o crime e o laudo falso]”.

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Enterro em Itajaí teve cortejo sem precedentes

Numa tarde de meados de fevereiro de 1969, após realizar exames médicos em Blumenau, Higino João Pio entrava em casa quando foi abordado por policiais que saíram de uma Veraneio do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e lhe deram voz de prisão. Ele tomara posse como prefeito de Balneário Camboriú em 15 de novembro de 1965, após vencer a eleição municipal de 3 de outubro pela coligação PSD/PTB, e ganhara o apelido de “pai da pobreza” pela preocupação com a população de baixa renda do município, emancipado de Camboriú em 1964.
Foi ali que a família o viu vivo pela última vez – duas semanas depois, seu corpo foi enterrado no cemitério da Fazenda, em Itajaí, acompanhado por um cortejo sem precedentes na história da cidade.

“Ele era feliz no meio do povo, falava com todo mundo e chegou a construir mais de 100 casas para famílias pobres”, disse o filho Júlio Cesar Pio em 2014, quando o Notícias do Dia publicou uma série de reportagens sobre os 50 anos do golpe. Só o prefeito soube do teor da acusação, na hora da prisão, se é que ela foi de fato expressa. Para a família, a falta de mandado judicial explica as motivações políticas do ato, embora houvesse críticas de irregularidades administrativas na prefeitura. Junto com Higino, outros funcionários foram detidos, mas todos acabaram soltos poucos dias depois, enquanto ele foi mantido incomunicável até a morte em Florianópolis.

Caso comparado a Vladimir Herzog

No relatório de 238 páginas que o coletivo entregou ao Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas da Udesc estão fartamente documentadas as peças produzidas pelo inquérito de março de 1969 na Escola de Aprendizes Marinheiros. Em depoimento, o primeiro-tenente Dario Nunes da Silva contou que não encontrou Higino João Pio no quarto e suspeitou que estivesse no sanitário. Como este estava trancado por dentro, chamou um oficial, que entrou pela basculante e viu a porta do box entreaberta. Disse o tenente que “ao empurrar a porta foi visto o sr. Higino pendente de um arame preso ao pescoço e ao registro de água, já sem vida”. Na versão oficial, o arame fora cedido para servir como varal de roupas ao preso.

Segundo a perícia de 2014, vários elementos comprovam que houve homicídio, entre eles a estranha posição do corpo, encontrado colado à parede e com os pés encostados no chão. Além disso, o nó do arame em volta do pescoço não era compatível com o estrangulamento constatado no laudo. Outra falha do inquérito inicial, concluído apenas quatro dias após a morte, em 7 de março de 1969, é a do registro de água, que não suportaria o peso da vítima, um homem de boa estatura e peso. Os peritos revelaram outros detalhes técnicos que desmentem a tese de suicídio e agrega fotos chocantes do morto em diferentes posições, deitado depois da autópsia e com o rosto contorcido. Exames nas artérias carótidas igualmente afastaram a hipótese de enforcamento.

Na Escola de Aprendizes, então comandada pelo capitão-de-fragata José do Cabo Teixeira de Carvalho, a tarefa de conduzir o inquérito policial militar coube ao primeiro-tenente Italo Brazil França. Mais tarde, o caso foi comparado, pelas características da farsa, ao caso da morte do jornalista Vladimir Herzog no DOI-Codi de São Paulo, em 1975, igualmente atribuída a suicídio por enforcamento. “A família sofreu horrores, e Higino nem era de esquerda”, afirma Derlei de Luca, da Comissão da Verdade. Ela diz que a ditadura não matou apenas comunistas e socialistas, mas “quem incomodava”, inclusive padres, em vários Estados.

Júlio Cesar Pio, filho de Higino João Pio tinha 14 anos quando o pai morreu - Daniel Queiroz/Arquivo/ND
Júlio Cesar Pio, filho de Higino João Pio tinha 14 anos quando o pai morreu
FotoDaniel Queiroz/Arquivo/ND

Forças políticas revisaram em decisões eleitorais

A mesma coligação vitoriosa em Balneário Camboriú, no pleito de 1965, venceu a eleição no Estado, com a chapa Ivo Silveira/Francisco Dall’Igna. Contudo, a UDN (União Democrática Nacional) era forte na região, assim como no Estado, e tentou impedir judicialmente a posse dos eleitos, conforme escreveu o advogado e historiador Carlos Alberto Silveira Lenzi no livro “Partidos e políticos em Santa Catarina” (EdUFSC, 1983). O resultado também não agradava os militares, que acabaram impondo o bipartidarismo (Arena e MDB) por meio do Ato Institucional nº 2 (AI-2). Em Santa Catarina, o regime cassou os direitos políticos do vice Dall’Igna por dez anos e, respaldado pelo AI-5, em 1968, prendeu vários líderes sindicais de Itajaí e municípios vizinhos. O processo entregue ao IDCH também mostra manobras e maquinações de opositores de Higino Pio, mas nunca foram encontradas provas de corrupção na prefeitura da cidade.

O desfecho do caso de Higino Pio, morto no exercício do cargo, aos 47 anos de idade, deixou fortes marcas na família. Sua mulher Amélia, que estava de aniversário no dia 3 de março, ficou sabendo pelo rádio que o marido se “enforcara” na prisão. “Minha mãe era uma mulher de fibra, mas ficou muito abatida e sem vontade de fazer nada”, contou o filho Júlio Cesar, que tinha 14 anos na época.

Fonte: ND Online

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