A viagem de cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para Nova York, com todas as despesas pagas pelo Grupo de Líderes Empresariais (Lide), do ex-governador de São Paulo João Doria, viola a Lei do Servidor Público, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional, os código de ética da Magistratura e dos Servidores do Supremo, além dos princípios de impessoalidade e moralidade da Constituição Federal, na avaliação de juristas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Durante a viagem aos Estados Unidos, os magistrados brasileiros também participaram de um jantar de luxo pago pelo Banco Master, investigado na Lava Jato sob o antigo nome de Banco Máxima. O proprietário da instituição financeira é o bilionário Daniel Vorcaro, que também foi alvo de um mandado de prisão em 2019 por suspeita de desvio de recursos em fundos de pensão de servidores públicos municipais.
De acordo com o artigo 117 da Lei 8.112/90, “ao servidor é proibido: receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições”. Outro documento disponibilizado pela Comissão de Valores Mobiliários, no site do Governo Federal, recorda as regras sobre recebimento de presentes por funcionários públicos. Segundo o texto, “o Código de Conduta da Alta Administração Federal (CCAAF), proíbe, em seu art. 9°, a aceitação de presente dado por pessoa, empresa ou entidade que tenha interesse em decisão da autoridade ou do órgão a que esta pertença”.
“Considera-se que o presente foi dado em função do cargo sempre que o ofertante: a) estiver sujeito à jurisdição regulatória do órgão a que pertença a autoridade; b) tenha interesse pessoal, profissional ou empresarial em decisão que possa ser tomada pela autoridade em razão do cargo; c) mantenha relação comercial com o órgão a que pertença a autoridade; d) represente interesse de terceiro, como procurador ou preposto, de pessoa, empresas ou entidade compreendida nas hipóteses anteriores”, detalha a orientação da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
“Certamente essas empresas que figuram nos processos da Lava Jato têm interesse em obter decisões favoráveis em muitos dos processos que estão respondendo perante o STF”, explica o advogado civilista Afonso Oliveira. “Trata-se de uma violação flagrante desta lei, e mais, uma violação dos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade”, completa.
Isenção comprometida
O advogado e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo Alessandro Chiarottino acrescenta que “há um problema significativo tanto constitucional quanto relativo à Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979), que prescrevem uma conduta de mais discrição do que os ministros vêm observando”. “O juiz deve se manifestar apenas nos autos do processo. Tanto que é desaconselhável eticamente até que ele escreva um texto de doutrina, porque eventualmente pode se comprometer com determinada posição, falando dela de forma acadêmica, seja em congressos ou por escrito, e incorrer em um conflito quando for julgar questões atinentes”, explica.
O jurista defende que, no caso específico do evento em Nova York, há o “problema adicional” da participação de grandes empresas como financiadoras. “A situação está longe do ideal. Amanhã, diante de uma empresa que financia viagens para o comparecimento de magistrados, qual vai ser a isenção deles para julgar casos em que ela esteja envolvida? Isso não quer dizer que ele vai ser guiado por favorecimento, mas não é algo recomendável para o magistrado. O adágio famoso de que ‘a mulher de César não deve apenas ser honesta, mas parecer honesta’ se aplica bem a esse caso”, afirma.
O Código de Ética da Magistratura dispõe, no artigo 17, que “é dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional”. Já o Código de Ética dos Servidores do Supremo Tribunal Federal (aprovado pela Resolução 711/2020) aponta que entre as “vedações ao servidor do STF” está “receber benefícios de transporte, hospedagem ou quaisquer favores de particulares que atentem contra os princípios elencados neste código”. Alguns dos princípios são “evitar situações conflitantes com suas responsabilidades profissionais e que podem afetar o desempenho de suas funções (…) atentar para que os atos da vida particular não comprometam o exercício de suas atribuições”.
Chiarottino analisa que, a partir de 2002, o Supremo “acabou se enveredando por muita exposição dos ministros”, até por meio do televisionamento das sessões, o que os levou a uma conduta midiática, não compatível com a função. “Eles passaram a ser pessoas públicas demais, dar entrevistas, comparecer a eventos nem sempre acadêmicos, tirar fotos com celebridades. Não que um juiz precise ser uma esfinge, mas uma exposição ao ponto de se confrontar com populares na rua é muito exagerada”, critica.
O advogado acrescenta que o comportamento dos ministros é ainda mais grave em um momento particularmente ruim de tensão institucional no Brasil. “Vi pessoas de esquerda fazendo duras críticas, não tem a ver com ideologia ou posição política. Esse tipo de atitude já não seria ideal em um momento político de céu de brigadeiro, mas, em um momento conturbado como estamos, me pareceu bastante inadequado. Não houve sensibilidade mínima, ainda foram em peso. Só podemos lamentar mais um episódio que não vem a contribuir para a defesa das liberdades e da democracia no Brasil de nenhuma forma”, completa.
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